sexta-feira, 16 de maio de 2008

O conjunto da tropa e os porões da ditadura

Doutores do mal: Félix Freire (à esq.), Aldir Maciel (ao lado) e José Brant (à dir.) são os homens que se destacaram nos órgãos de repressão pela frieza e morbidez receberam licença do governo para matar e ocultar cadáveres de militantes do PCdoB, da AP, da VPR, do PCB (revista ISTO É, 2004)
MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 16 DE MAIO DE 2008


“Nessa hora tem de agir com muita inteligência para não ficar vestígio nessa coisa”, General Ernesto Geisel, ao comentar a prisão e a morte de um grupo de sete pessoas, vindas do Chile e da Argentina, capturadas no Paraná, segundo Élio Gásperi.
Um oficial da reserva, entre os muitos militares que lêem a minha coluna e com quem troco e-mails, repassou um vídeo com o trabalho que o Batalhão de Engenharia do Exército vem fazendo na rodovia BR-101, entre Recife e Natal.
No filme, o apresentador Alexandre Garcia mostra qualidade da obra e pergunta por que as empreiteiras privadas não fazem igual, com os mesmos cuidados. “Amigos, esta é para repassar com muito orgulho, por eu ser militar. Os elogios aqui ditos pelo Alexandre Garcia, nesta reportagem, muito autênticos, são válidos e se aplicam a toda as nossas Forças Armadas”.
Não é de hoje que o Exército presta tão relevantes serviços ao país. Foi devido ao pioneirismo dos militares, que passamos a formar depois os engenheiros civis.
Faço questão de abrir esta coluna com esse reconhecimento para que fique claro: os militares profissionais, legalistas, patriotas e defensores das instituições, que sempre foram a grande maioria da tropa, nada têm a ver com o grupo de celerados e ambiciosos que manteve o país sob o terror de uma ditadura monitorada diretamente pelos Estados Unidos.
Por isso mesmo, age de má fé quem insiste em lançar o conjunto da tropa e a instituição contra a indispensável apuração de todos os excessos praticados no interior das instalações militares, incluindo a localização dos corpos dos mortos, que foram enterrados às escondidas e de forma indigna para esconder as barbaridades de responsabilidade do regime ditatorial.
Quem é quem
Os militares legalistas serão os mais beneficiados com a abertura dos arquivos daquela época. Os documentos mostrarão que os excessos foram restritos a um pequeno grupo dominado muito mais por impulsos perversos, por sentimentos revanchistas, do que pela natureza de suas tarefas – a defesa do estado ditatorial que, aliás, nunca foi ameaçado pelo meio milhar de brasileiros que pegaram em armas.
Pode até ser que muitos militares tenham consentido nos excessos, sob influência da propaganda maciça disseminada “para o público interno”, com a utilização de técnicas de lavagem cerebral ensinadas na Escola das Américas, o centro de treinamento mantido pelo Pentágono durante muitos anos no Panamá, onde fizeram cursos milhares de oficiais do Continente.
Além disso, o governo ilegal, imposto pelos tanques, dispunha de um leque de alternativas para imobilizar a tropa. Preso de Marinha, pude testemunhar o constrangimento de muitos oficiais, sargentos e cabos diante dos fatos consumados sobre os quais tinham de silenciar, em nome da “segurança nacional” e para não serem perseguidos.
Acredito até hoje que o comandante Lindemberg Pereira, do Presídio Naval, falava com toda sinceridade quando jurava que essa história de tortura era discurso subversivo. Potiguar, filho de um taxista, com um irmão chamado Lenine, ele procurava administrar a pressão que recebia para “apertar” os presos políticos que iam para lá depois de “interrogados”, e, como eu, eram jogados na Quinta Prisão, a mesma onde um dia ficou Tiradentes.
Foi o tenente Gildásio, oficial-dentista do Batalhão Humaitá, quem ligou para a professora Sandra Cavalcanti, cuja solidariedade jamais deixarei de reconhecer, para avisar que eu estava “seqüestrado”, ali, na Ilha das Flores.
Nas horas em que foi oficial do dia – de sábado para domingo da última semana de junho de 1969 – por sua conta a risco, me tirou do catre em que estava algemado, sob mira da metralhadora do soldado Gilson, e me garantiu um relaxamento de algumas horas.
Por coincidência, o tenente Gildásio era o mesmo profissional que se habilitara, numa seleção imparcial, ao cargo de dentista da Fundação Paulo Bittencourt dos empregados do Correio da Manhã, quando eu a presidia. Multado, de origem humilde como muitos dos que ingressam nas Forças Armadas, ele não ficou muito tempo naquele centro de torturas sob a batuta do comandante Clemente José Monteiro Filho, um capitão de mar e guerra fuzileiro naval,que coordenava pessoalmente os suplícios e ainda fazia questão de exibir suas “presas” a visitantes estranhos.
Aos oficiais que tiveram que calar ou simplesmente foram transferidos para empresas estatais e outras funções civis, deve incomodar até hoje todo aquele espetáculo deprimente, que encheu de constrangimento boa parte da tropa.
Os mesmos de sempre
Àquela época, os mandantes eram praticamente os mesmos coronéis signatários do manifesto contra o ministro João Goulart, em 1953, já liderados pelo então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva; os mesmos militares que bancaram a crise de 1954, quando o presidente Vargas foi levado ao suicídio; os mesmos generais que tentaram impedir a posse de João Goulart em agosto de 1961, e os mesmos oficiais da Aeronáutica dos levantes de Aragarças e Jacareacanga, entre os quais o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, e os mesmos almirantes que quiseram impedir a posse de Juscelino em 1955, sob a liderança de Carlos Pena Botto.
Se somar, não chegam a duzentos. Porque eles trataram de criar mecanismos para impedir o florescimento de lideranças militares independentes, como a do general de divisão Albuquerque Lima, impedido de “disputar” a sucessão do general Costa e Silva, por só ter três estrelas.
Um desses mecanismos foi o sistema de remanejamento automático de generais e coronéis, que não podiam ficar mais de dois anos consecutivos na tropa. Conseguiram, assim, que os divergentes fossem imobilizados, de tal forma que as insatisfações acabaram sendo canalizadas para alguns dissidentes, como o general Euler Bentes Monteiro, que quando coronel assinou o manifesto contra Jango, e para o general Hugo Abreu, que participou da última fase das operações de extermínio no Araguaia.
Assim também, não vejo porque as gerações de hoje, que têm demonstrado absoluto respeito à Constituição, podem se sentir atingidas pelas revelações das aberrações de maus colegas, muitos dos quais se orgulhavam das matanças, como revelou à revista ISTO É, em 2004, Marival Chaves Dias, ex-agente do Doi-Codi, que acompanhou pessoalmente os espetáculos de sadismo e brutalidade: ““O Doutor Magno sentia um prazer mórbido em me contar que apostava com outro carcereiro quantos pedaços ia dar o corpo de determinado prisioneiro executado. As impressões digitais eram as primeiras partes a serem cortadas ”.
coluna@pedroporfirio.com
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