segunda-feira, 5 de maio de 2008

No jogo das aparências, ninguém fala das imposições do agronegócio

Bancada ruralista: ou dá ou desce
MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 5 DE MAIO DE 2008

"A sabedoria não nos é dada. É preciso descobri-la por nós mesmos, depois de uma viagem que ninguém nos pode poupar ou fazer por nós."
Marcel Proust (escritor francês – 1871-1922)
Disse-o muito bem o arguto político mineiro: o que importa é a versão e não o fato. A essa obra prima da sabedoria política, cumpre-me acrescentar: a couraça das aparências dominou geral. Deduz-se, portanto: assim é, se lhe parece.
Esquadrinhe a vida, o seu cotidiano e eleve seu olhar para além das montanhas alterosas e você sofrerá um choque depressivo. Isto se também já não tiver se convertido de um personagem de si mesmo, hábito em uso desde priscas eras.
Tudo o posto é um abominável surto de quimeras induzidas. Somos incitados a contar com bonanças deste e do outro mundo. É um jogo em que uma meia dúzia dá as cartas. E ainda estoca algumas nas mangas. Os outros entram de gaiatos, crentes que abafam. Uma pena!
Manipulando o raciocínio
Viu o que fizeram do ídolo? Deram-lhe corda para enforcar-se. Assim caminha a humanidade. Você está sujeito a pegar o bonde andando e a descarregar sua verve em cima dos alvos predeterminados por eles, os da meia dúzia referida.
A ciência do poder montou uma sofisticada engrenagem com tudo o que eles têm direito. Espertos mais da conta, cuidaram dos mínimos detalhes. Um logro da pesada.
Entre nós, conseguiram o que queriam e o que não queriam. Dar mais do desejado é da nossa natureza latina, cristã, dessa preguiça mental que prefere entregar os pontos a queimar a mufa. Uma lástima.
Fale do que falar, sem notar, você acaba falando o programado por eles. E do jeito que lhes apraz. Você não é uma metamorfose ambulante. Ainda bem. Em compensação é vulnerável, dotado de boa fé e de crenças atávicas, enraizadas. Um descuidado.
Então temos a espécie humana e dentro dessa espécie humana a incidência de poderes sobrepostos sobre nossa compreensão mais elementar.
Segundo a cartilha do núcleo central do pensamento dominante, você não pode ir além de um certo limite na busca da verdade. Todos nós, aliás, estamos sujeitos a tais constrangimentos. Eu também.
Eu iria mais longe. Percebo que querem fazer de você a grande vítima da informação ilusória e direcionada que espargem, jogando, inclusive, com décadas – e séculos – de versões ao gosto dos vencedores, e, no nosso caso, os vencedores seguramente não somos nós.
Eu sei e você sabe que o produto das aparências não tem nada com a realidade. Antes, pelo contrário. Mas quantos podem acordar para as ciladas montadas com o melhor da tecnologia do pensamento? Quantos?
Temos um país cada dia mais distante de si. Eu vejo e você vê. A influência dos centros do pensamento permite que cada um saque esse distanciamento. Mas inocula, junto, uma reação a seu gosto. Eis a questão.
Alimentos escassos
Está claro que, mais dia, menos dia, vamos ter problemas com a alimentação. A essa altura, nada é mais trágico do que saber do renascimento do poder feudal. Isso mesmo. Por tais descaminhos percorridos, agora estamos na mão de um grupelho de donos da terra.
São os grandes vigaristas que se vestem de toda pompa em nome do agronegócio, uma mescla inflamada da atávica ausência de compromissos sociais com a novíssima descoberta da especulação financeira, como o melhor das paradas de sucesso.
Consumimos 10 milhões de toneladas de trigo. Poderíamos produzi-las. Mas não passamos de 3 milhões. Porque o agronegócio está de olho na soja, que virou um negócio da China. Ainda hoje, vale aquele escrito dos idos de setenta: exportar é o que importa.
Os batutas do agronegócio mandam e desmandam. Devem 90 bilhões ao Banco do Brasil, mas já está na agulha um acordo de repactuação dessa dívida.
Donos de muitas cadeiras no Congresso Nacional, eles não querem apenas o refinanciamento. Querem dar meio calote. Como? Exigem que o governo desconte do que devem a queda do dólar. Como se tivessem tomado dinheiro na moeda norte-americana.
Você não tem idéia do que sejam 90 bilhões. Mas é o equivalente do orçamento de dez anos da Prefeitura do Rio de Janeiro. De 90 anos do orçamento da Prefeitura de Natal. Para chegar mais perto, esse dinheiro corresponde a seis vezes o que é gasto com o programa bolsa-família, que alcança 11 milhões de famílias.
Mas muitos de vocês, que talvez não saibam de nada disso, concentram sua indignação nos movimentos sociais como o MST, que a mídia já criminalizou, como se suas ações fossem causas – quando na verdade são conseqüências de uma combinação de promessas congeladas, concessões exageradas, omissões e falta de decisão de governos que descobriram a pólvora na distribuição de esmolas aos que precisam de terras, ferramentas e oportunidades de trabalho.
Qualquer governo sério priorizaria a questão da terra, com uma reforma agrária inteligente, que criasse as condições para a fixação e a volta do homem ao campo, ao mesmo tempo em que estimulasse a produção de alimentos.
O governo do sr. Luiz Inácio e dos falsos profetas não quer nem saber de encarar os senhores da terra, que só falam em “comoddites”, da especulação no tal mercado futuro, um jogo pelo qual a conta acaba sobrando para quem não tem nada a ver com o peixe.
Pudera. O governo da presidente Cristina Kristncher passou o maior perrengue porque quis enfrentar o agronegócio da Argentina, taxando as exportações para garantir o abastecimento do mercado interno. Interditaram rodovias, paralisaram tudo, promoveram o desabastecimento, e contou com o apoio de toda a mídia, parte da qual, aliás, é propriedade dos que podem promover a desordem, porque fazem parte da elite, que tem o monopólio do Estado e da economia de qualquer país.
Aí é que eu digo. É difícil reconhecer autoridade moral em quem desanca o MST e cala para os abusos dos grandes do agronegócio. Estes podem sonegar, ficar com o nosso dinheiro, direcionar seu plantio de costas para as necessidades reais do país. É como se gozassem de um certo tipo de imunidade, alimentada até por quem vai ficar na prejuízo, mas que, por “solidariedade de classe”, cala e consente.
Já os famélicos, os que só querem um pedaço de terra para prover seu ganha-pão, esses são tratados como marginais, baderneiros, inimigos da lei e da ordem.
Enquanto for assim que a banda toca, contemplaremos uma dramática comédia de equívocos, em que os formadores de opinião e os próprios cidadãos voltarão suas baterias para os alvos que eles, os donos do mundo, determinam.
coluna@pedroporfirio.com

Um comentário:

Anônimo disse...

É a lucidez deste brasileiro, Pedro Porfírio, que a cada dia mais admiro. É a conscientização de nossa impotência diante da barbárie.