quinta-feira, 3 de abril de 2008

Porque quarta-feira é meu dia de tortura

Foi ali mesmo, naquele prédio, de frente para o ancoradouro, que fiquei algemado a um catre nos primeiros dias de prisão, antes de ir para as sessões de torturas, iniciadas na quarta-feira, dia 2 de julho de 1969. A foto é do acervo de Eva Lins.
MINHA COLUNA NA TRIBUNA DA IMPRENSA DE 4 DE ABRIL DE 2008

“Hoje, 43 milhões de processos se encontram na fila aguardando julgamento da Justiça. Desse estoque de processos que dormitam nas prateleiras do Judiciário, 32 milhões estão emperrados ainda no primeiro grau de jurisdição”.
Rubens Approbato Machado, advogado, ex-presidente do Conselho Federal da OAB.
Quarta-feira, 2 de julho de 1969: pelo basculante de um cubículo improvisado na histórica Ilha das Flores, de frente para o mar manso da baia de Guanabara, avisto três homens descendo de uma chata no pequeno ancoradouro.
Um deles, já conhecera na madrugada de 27 de junho, quando meu apartamento foi invadido por excitados agentes da repressão. Com seus óculos de fundo de garrafa era é o violento Solimar, a quem apelidamos de “Doutor Silvana”.
Dos outros dois - imaginava em minha santa ingenuidade - um devia ser advogado, enviado em meu socorro. Estava chegando a hora de sair do pesadelo – pensava, na crença juvenil de que alguém havia descoberto o seqüestro de que fora vítima, pouco depois de deixar a nervosa redação da TRIBUNA DA IMPRENSA, na rua do Lavradio, que dirigia naqueles dias de incerteza.
Qual nada. Todos eram torturadores e chegavam ali para iniciar o longo ritual de suplícios, que só terminaria na última cena de outra quarta-feira, 16 de julho.
Quarta-feira, 2 de abril de 2008: numa tarde quente de um outono desfocado, a 20ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro me ofereceu a mesma sensação daquela manhã fria.
Para a minha surpresa, a desembargadora relatora do nosso embargo de declaração, que já tinha parecer favorável do Ministério Público, decidiu retirá-lo de pauta, contrariando decisão anterior de 25 de março, com um despacho em que escreveu:
“NO QUE SE REFERE AO AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO AS FLS. 508 E AOS EMBARGOS DE DECLARACAO INTERPOSTOS AS FLS.511/521 E FLS. 523/525, AGUARDEM-SE A DECISAO DO MANDADO DE SEGURANCA NR. 2007.004.01810, INTERPOSTO PERANTE O ORGAO ESPECIAL DO TJERJ, EM VISTA DA LIMINAR CONCEDIDA EM FACE DE ATO PRATICADO POR ESTA RELATORA. 5- DESTA FORMA, REEXAMINANDO OS AUTOS EM CONFRONTO COM A LIMINAR CONCEDIDA NO MANDAMUS REFERIDO NO ITEM 4, RECONSIDERO, DE OFICIO, A PARTE FINAL DA DECISAO DE FLS.658/V."
O suplício das quartas
Quarta-feira é, decididamente, o dia da semana que me marca a alma a ferro e a fogo. Olhando o dantes, descobri que também foi num temporal de uma quarta-feira, 17 de março de 1943, que dona Guiomar começou a passar mal no sobrado da Praça São Sebastião, em Fortaleza, temendo pelos raios e trovões que cortavam o céu furioso, como que dizendo: vocês querem água, então tomem! Tanto incomodaram com suas orações com medo da seca, agora sirvam-se.
Levada às pressas para a Casa de Saúde César Cals, na Praça da Lagoinha, iria dar à luz um menino de sete meses, esquálido e com menos de dois quilos. Esse rebento era eu.
Vinte e seis anos depois...Logo que sentei numa cadeira na Casa 9 da Ilha das Flores, naquela quarta-feira fria de julho, passei a viver a primeira cena de uma tragédia da vida real, tal como descrevi em meu livro “Confissões de um Inconformista”:
— Quem te mandou sentar?
— O torturador Solimar, codinome Dr. Cláudio, acertou-me um tapa no meio da cara. A porrada me fez ver estrelinhas. Um pouco mais alto do que eu, óculos de garrafa e uns cornos que lembravam o Dr. Silvana, o torturador bufava, transpirando ódio e terror. Agarrou-me pelo pescoço e pôs-me de pé. Outra porrada me jogou ao chão. Estava começando uma sessão de tortura na casa 9 da Ilha das Flores.
Solimar fez-me cheirar o chulé do seu pé:
— Qual é a cor da minha meia, seu filho da puta?
Que pergunta mais insólita, pensei.
— Qual é a cor da meia do pé direito? – especificou. Já que insistia tanto, respondi:
— Azul –um azul piscina, diria.
— E do esquerdo?
— Certamente, azul também.
A resposta o enlouqueceu.
— Não, seu puto, do pé esquerdo é azul marinho, é mais escura.
Percebi que tinha um bom estoque de palavrões, mas não consegui atinar para sua insistência sobre o colorido de meias tão fedorentas. Afinal, não podia admitir que tinha levado aquelas porradas todas só para falar de meias azuis e suas variáveis. Até que pintou o providencial esclarecimento:
Até hoje, quando chega a quarta-feira, uma certa tensão me envolve, como explicaria Ivan Petrovich Pavlov, o fisiólogo russo que desenvolveu a teoria do reflexo condicionado. É como se fosse o dia do inferno astral da minha folhinha.
O que você faria?
Você estará lendo esta coluna numa sexta-feira. Já estamos no quarto mês do calendário do absurdo judiciário. Um calendário que, aliás, não é minha exclusividade.
Como eu, outros milhões de brasileiros estão à espera de que seus processos sejam julgados. O número é desanimador: só em São Paulo, há 12 milhões nas gavetas. Lá, alegam que falta dinheiro. E lembram que no TJ-RJ há uma arrecadação extra, o tributo direcionado das custas judiciais, que já somam mais de R$ 200 milhões.
No meu caso, o dano é maior porque o mandato de um parlamentar tem dia e mês para findar. Se já é uma tortura ser “cassado” por uma suposta renúncia antes mesmo da posse, imagine se considerarmos que dentro de nove meses esse mandato “renunciado” não existirá mais.
Daí, não ter elemento de juízo para afirmar qual das torturas me causou maiores danos: se a truculência que me atingiu quando tinha 26 anos ou se esse despacho do dia 2 de abril de 2008, que mantém por mais de cem dias a subtração insustentável de um mandato parlamentar legítimo.
Desde que li o despacho da desembargadora, vi-me tomado por um turbilhão de dúvidas. FIQUEI EM ESTADO DE CHOQUE, PENSANDO EM PARAR TUDO, EM ENTREGAR OS PONTOS NA MAIOR. E em dedicar-me ao meu pomar aqui, no sopé da Serra dos Três Rios.
Isso não quer dizer que tudo está perdido. Mas é um mal presságio, é um agouro, é um aviso patético, um soco no fígado como disse o outro. Não será surpresa se o julgamento do mérito no Órgão Especial do Tribunal de Justiça ficar para quando o mandato já não mais existir.
Pedro Ivo, meu filho que desistiu da faculdade de direito e abriu mão de dois anos de sua vida acadêmica para fazer outro vestibular no final do ano, (QUALQUER UM, MENOS DIREITO) veio me confortar:
- Pai, pode deixar, vamos fazer uma estratégia para vencer, uma campanha na raça, nem que seja a pé.
Curioso, ele nunca tinha se envolvido diretamente com minha atividade política.
Isso me tocou, mas mesmo assim, permaneço na mais confusa das dúvidas: no meu lugar, o que você faria?
coluna@pedroporfirio.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro amigo eu que tem que fazer o que o coração manda.
Tudo na vida é válido, não devemos deixar as oportunidades fugir de nossas mãos, agarre-a com força e vá em frente. Você nasceu pra isso.
Um abraço
Cleia Carvalho