domingo, 16 de março de 2008

Quando cheguei, o mundo estava em chamas. ...como hoje...ainda


O marechal Paulus, à frente do que restara do altivo 6º Exército alemão, rendeu-se aos soviéticosem 2 de fevereiro de 1943. Anunciou-se ali o destino da Alemanha nazista. Ao ser comunicado do desastre, Hitler disse a Goebbels: “os deuses da guerra trocaram de lado!” Um mês depois, caia um temporal em Fortaleza e eu vinha ao mundo quando minha mãe mal completara sete meses de gravidez.

Quando eu nasci, os governantes da Inglaterra, EUA e URSS estavam unidos contra o nazismo. Depois.....veio a guerra fria .


“A sabedoria dos velhos é um grande engano. Eles não se tornam mais sábios, mas sim mais prudentes”.
Ernest Hemingway, escritor norte-americano (1899 - 1961)

Como já anunciei em altos brados, amanhã fará 65 anos desde que cheguei ao mundo de surpresa, naquele temporal de bons presságios, véspera do dia de São José, na Fortaleza de Nossa Senhora Assunção, quando uma quase quarentona mal completara 7 meses de gravidez.
Não sei se ainda é assim, mas naqueles idos, se não chovesse até o dia São José, o camponês fazia o sinal da cruz e tratava de pegar o destino incerto, onde pudesse sobreviver, nem que fosse a pão e água.
Mas, felizmente, choveu aos cântaros. “Seu Doca”, meu pai-avô, fazendeiro de raiz, já entrava nos sessenta. A mãe, vinte e tantos anos mais nova, havia tido o primeiro filho em 1939. Esse espaço de tempo não era normal no Ceará das proles fartas.
Também pudera. O mundo estava no auge da guerra. Os brasileiros ocupavam as ruas exigindo o nosso engajamento contra os nazistas. Quando começou o temporal, longe dali, o navio caça-submarino brasileiro JAGUARIBE, em serviço de comboio, atacou e afundou um submarino alemão.
No cenário da guerra que custou 50 milhões de vidas –entre as quais 20 milhões de soviéticos e 6 milhões de judeus – o grande ditador começava a perder terreno. Em 31 de janeiro daquele 1943, amargou a resistência heróica de Stalingrado e registrou sua primeira grande derrota.
Três dias antes do meu nascimento, o presidente Vargas aprovou o memorando do ministro da Guerra, general Dutra sobre o envio da Força Expedicionária Brasileira – FEB.
Foram enviados para a Itália, com a FEB, 25.300 homens, dentre eles Lutero Vargas (filho de Getúlio), dos quais quinze mil participaram da luta. Entre eles, 451 perderam a vida e cerca de dois mil foram feridos em combate.
Um mundo em guerra
Era o começo do fim: no dia 13 de maio, Hitler sofreria sua derrota definitiva na África; e no dia 25 de julho, o ditador Benito Mussoline era preso e a Itália começava a mudar de lado.
Nasci sob o signo da segunda guerra mundial. Naquele clima, só o meu meio-irmão mais velho, médico, arriscou garantir que eu ia sobreviver, apesar dos raquíticos dois quilos e outros poréns. Foi ele que me batizou na Igreja do Patrocínio, com sua esposa. Dalva, que ainda está aí para testemunar os momentos dramáticos que marcaram meus primeiros dias – na casa de saúde Cesar Cals e na Europa em chamas.
Nasci numa hora em que ninguém se entendia e todos procuravam uma verdade golfada pelo sangue de soldados lançados ao combate no mero cumprimento de um dever, na incerteza e na obrigação de matar para não morrer.
Mas essa guerra nunca acabou. Seis décadas e meia depois, continua sendo um atestado da insanidade humana. E uma razão de ser da indústria mais lucrativa do mundo, sem a qual algumas economias podem ruir.
Por que estes escritos são uma conversa entre parceiros – amigos ou não – viajei no tempo para sugerir algumas reflexões na condição de idoso formal. Afinal, faço parte de uma comunidade que se compensa com reminiscências e se sente mais útil quando oferece suas palavras encorpadas pelo tempo.
Quero lhe abrir meu coração numa boa. E tenho razões de sobra para esse exercício. A leitura dos e-mails que recebo e dos comentários apostos no questionário respondido recentemente revela que tenho me relacionado com pessoas inteligentes, sagazes, dotadas de um acurado senso crítico e de um comovente espírito público.
Tenho certeza de que, ao levantar-me amanhã, minha ambigüidade existencial produzirá duas sensações díspares: de um lado, a idéia de que estarei mais jovem, ao completar 65 anos; de outro, a percepção de, finalmente, ter atingido a maioridade.
Esse choque sensitivo que fermenta meu cérebro vulcânico acentua a personalidade do lobo da estepe de Hermann Hesse que há em mim. Eu bem que queria ser hoje apenas um rosto perdido na multidão, desfrutando do meio século de labuta e inconformismo.
A tragédia é o mau caráter
Mas devo ter o DNA do fidalgo Alonso Quijada, o dom Quixote que fez da obra de Cervantes o segundo livro mais vendido do mundo. Porque não consigo e nem desejo fruir o merecido repouso do guerreiro. Essa seria - tenho clareza – minha morte cerebral e o ingresso voluntário na vida vegetativa.
É certo que nada faço sem pensar. Só não garanto se antes ou depois. É igualmente certo que não me mantenho na liça só por impulso interior. Não. Eu me sentiria um covarde, diante de tantos exemplos de mais velhos que não sabem o que é descanso.
Aqui mesmo nesta TRIBUNA há exemplos de tenacidade que não me deixam parar. Sabe que, fazendo as contas, Hélio Fernandes poderia ser meu pai, com seus 86 anos de hercúlea disposição para sustentar o milagre de um jornal independente e solitário nesse ambiente em que a opinião foi ao mercado?
Ao deparar-me com a idade em que terei direito a passagem gratuita nos transportes urbanos, posso me considerar um vitorioso, até porque, seguindo Sócrates, também acho que “uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida”.
Devo ter tido muita sorte até hoje. Nunca me curvei, nem me rendi, nem me adaptei, nunca aderi, nem me vendi, nem neguei minhas idéias, nem me sujeitei à pauta do sistema e, no entanto, levo um padrão de vida que negam aos aposentados de minha geração.
Não me considero nenhum paradigma. Mas creio que o mais importante ao alcançar uma idade que nem pensava chegar é ter a certeza de que a dignidade nunca fez mal a ninguém. Antes, é a fortaleza do ser humano.
Você que convive comigo sabe da minha natureza emocional, quando expresso minhas críticas e minhas angústias. Tem hora que me deixo dominar pela flor da pele. Que esperneio quase aos prantos.
Mas isso quer dizer apenas que sempre fui um ser humano, igual a você. Já passei por poucas e boas, como tenho dito. Reconheço-me tomado por um juízo crítico exacerbado. Mas se tenho que apontar a maior tragédia da minha vida, essa é ter de conviver com o mau caráter de uma súcia poderosa. Lamentavelmente, esse tipo prolifera como uma praga, independente de idade, ideologia, religião, raça e sexo.
A compensação é quem conserva seus valores éticos e morais, como você. Ainda existe muita gente de boa índole na face da terra. É isso que me oxigena. Na minha calculadora, uma pessoa decente, correta, transparente vale mil vezes mais do que um canalha. Daí a minha festa interior pelos 65 anos de vida bem vivida.
coluna@pedroporfirio.com

Nenhum comentário: