quinta-feira, 20 de março de 2008

De como se torra o dinheiro público na fogueira das ilusões

Quando secretário de Desenvolvimento Social percorri várias vezes a pé e sem "seguranças" o Complexo do Alemão. Logo atrás, o engenheiro Hélio Aleixo, atual secretário de Obras de Nova Iguaçu, criado na favela Nova Holanda, que teve sua primeira oportunidade na minha equipe da SMDS. Aqui, estamos no ponto mais alto da antiga Serra da Misericórdia. Ao fundo a igreja da Penha. O Morro do Alemão ganhou esse nome no início da década de 50, quando o polonês Leonard Kaczmarkiewicz comprou lotes e foi morar lá. “Da nossa parte, a gente só ganha mesmo é bala. É a única coisa que nós temos aqui do outro lado. É só “caveirão” subindo e dando tiro” – Maria do Socorro Lima dos Santos, moradora da favela da Merindiba, do “Complexo da Penha”, ao lado do “Complexo do Alemão”.
É preciso ter ouvido de mercador e uma vista prá lá de cansada, ou mesmo uma baita cara de pau, para calar a boca diante de uma das farras mais irresponsáveis com o dinheiro público, com o único objetivo de produzir um espetáculo circense em nome de uma suposta intervenção social em três áreas de favelas selecionadas para servirem de mostruários.
Francamente, não dá para entender. Até parece que uma certa mídia prefere ver o circo pegar fogo para depois ter o que falar. Ou então, desapareceram as calculadoras das redações, das casas legislativas e dos centros de opinião. Ninguém se arrisca a falar da extravagância.
É isso mesmo. Jogar um bilhão de reais em três projetos empíricos de melhorias presumidas em três focos já atendidos anteriormente a custos muito mais baixos é dispor do dinheiro público como se fosse privado.
Estou falando de uma distorção gravíssima do ponto de vista institucional, na medida em que a opção por certos gastos se faz a bel prazer de um governante, sem prévia consulta a uma casa legislativa e sem discussão com a sociedade.
Cenário espetaculoso
No caso, nem mesmo as comunidades “beneficiadas” pelos projetos faraônicos, como um teleférico de 120 milhões de reais (isto sem contar os futuros e viciados “aditivos”) foram consultadas.
O governador Sérgio Cabral Filho pegou o repasse do PAC, dinheiro de todos os contribuintes, e decidiu na solidão de um poder que subiu à cabeça: vou aplicar aqui e ali e vou fazer isso do jeito que me aprouver.
Não houve um debate com a sociedade, uma audiência pública numa casa legislativa, nada. Chamou três ou quatro profissionais e ordenou: montem um cenário espetaculoso na Rocinha, no Complexo do Alemão e em Manguinhos, caprichem no quesito originalidade e deixem o resto por minha conta.
Essas comunidades ficaram sabendo do que será feito pelo deslumbramento da mídia e pela oferta de empregos, que poderão chegar a 4 mil: nada mal, apesar de temporários. Mas e as outras 700 áreas carentes, com problemas de mais fácil solução, como é que ficam?
E os problemas comuns da grande cidade, que está doente por falta de uma política de saúde competente; que tem baixíssimos índices de qualidade de ensino público, que se expande sem um projeto de transportes racional?
Você provavelmente nem sabe desses delírios juvenis. O governador cismou de colocar um teleférico no conjunto de favelas da antiga Serra da Misericórdia para imitar o que viu na comunidade de Santo Domingo, em Medelín, Colômbia, e não fez por menos: contratou o projeto com o engenheiro francês Eric Romagna e vai comprar na França os 200 carros (com capacidade para 8 passageiros) e os cabos que farão a ligação para a estação ferroviária de Bonsucesso.
Ao anunciar essa “obra turística” ele demonstrou um total desconhecimento da realidade desse ajuntamento de moradias precárias que dá para os bairros de Ramos, Bonsucesso, Olaria, Inhaúma e Penha.
Sequer fez as contas: o projeto do Alemão vai consumir 495 milhões de reais , (isso sem os aditivos) 100 milhões menos do que a Prefeitura gastou de janeiro de 1997 a outubro de 2000 no projeto “favela-bairro”, (que já não é barato) em intervenções em 180 comunidades, abrangendo 737 mil pessoas.
Nas minhas contas, as 11 favelas do Complexo têm menos de 200 mil pessoas (não junte no mesmo balaio o Complexo da Penha, cuja âncora é a Vila Cruzeiro) e sempre teve atenção do poder público – claro, numa em caráter definitivo.
A primeira favela que o governador Leonel Brizola visitou ao voltar do exílio foi a da Grota, na Rua Joaquim de Queiróz, uma das entradas do “Alemão” onde a CEDAE, sob o comando pessoal do secretário Luiz Alfredo Salomão instalou a primeira grande rede de água em comunidades proletárias. A caixa d’ água instalada no alto do morro foi levada de helicóptero e o sistema de saneamento foi considerado modelo na década de 80.
Chega de insanidade
Há um dado que talvez o extravagante governador não saiba: O índice de desenvolvimento humano (IDH) do Complexo do Alemão é de 0,587, superior ao de muitos Estados da região Nordeste. Isso significa que a situação da educação, da renda per capita e da saúde da favela carioca é melhor do que a de vários Estados, como o Ceará, que tem IDH de 0,506, Pernambuco, 0,577 ou Piauí 0,502.
Eu não quero dizer que esse complexo, que conheço na palma da mão porque o percorri mais de uma vez quando secretário municipal de Desenvolvimento Social, dispense atenção do poder público.
De fato, toda essa cidade precisa da presença do Estado. Mas sem perder a lucidez jamais. O bilhão destinado pelo PAC a esses três focos representa mais de 10% do orçamento fiscal da Prefeitura do Rio de Janeiro, que tem mais de mil escolas, com mais de 700 mil alunos, e um grande rede de saúde. E mais: uma escola padrão da Prefeitura custa R$ 4 milhões e 300 mil. Com R$ 120 milhões, teríamos 28 escolas novinhas em folha.
Para efeito de comparação, vale observar ainda: esse bilhão de reais é mais de que todo o orçamento de R$ 962 milhões da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, para 2008.
Não sei se terei êxito esmiuçando a barbaridade que começou a ser posta em execução com festas de quem precisa de uma cutucada para abrir os olhos. Mas vou fazer isso, área por área, pela responsabilidade que tenho e pelo zelo que sempre tive com o dinheiro público: para você ter uma idéia, no início da década de 90, quando secretário municipal de Desenvolvimento Social, gastei menos de 2 milhões de reais no PESZO – programa de implantação da rede de esgotos em mais de 200 comunidades da Zona Oeste do Rio de Janeiro, através do Projeto Mutirão, sem paternalismos, sem empreiteiras ávidas, sem isso que você sabe muito bem que corre quando o dinheiro público rola fácil.
E vou fazer das tripas coração para mobilizar a opinião pública sobre esse devaneio que vai gastar dinheiro até para levantar uma linha férrea, sem falar na construção de apartamentos que são bens pessoais, de família e, portanto, devem ser responsabilidade de cada um.
No tempo do Brizola, que você culpa por um monte de coisas, o governo trabalhou na infra-estrutura e cuidou da legalização das habitações no programa “Cada Família um Lote”, desenvolvido pelo então secretário CAÓ. Isso era o que todos queriam.
Vou fazer tudo, avisando: se essas obras de mostruário não derem certo, não venham de bodes expiatórios, como já estão desenhando no horizonte com essa conversa de que o tráfico não admite as melhorias e, portanto, o Estado está fazendo verdadeiras operações de guerra.
coluna@pedroporfirio.com

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