segunda-feira, 24 de março de 2008

Porque o Estado se mete com o que não é da sua conta

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Em um dos acessos da Rocinha, o Estado implantará uma piscina e uma bela passarela com a assinatura de Niemeyer. Um ganho pontual e irreal em meio às precárias condições de vida de um milhão e meio de cariocas.
“Uma marca fundamental do processo de urbanização sob a industrialização com baixos salários é um mercado de moradias restrito e concentrado. O que poucos percebem é que grande parte da população urbana brasileira não tem condições de comprar a moradia no mercado privado legal”.
Ermínia Maricato, ex-secretária de Habitação de São Paulo.

O mais lamentável nesse ambiente temerário que marca a intervenção do poder público nas favelas é o desconhecimento explícito de sua complexa realidade. Essa história de que o governo do Estado vai torrar 1 bilhão de reais do Programa de Aceleração do Crescimento em três projetos pontuais com resultados duvidosos é mais um elemento vexaminoso numa seqüência de levianas improvisações sem qualquer premissa estratégica.
Nas três áreas escolhidas, as autoridades do Estado demonstram que ouviram o galo cantar, mas não sabem aonde, explicitando a impropriedade de sua intervenção, antes de mais nada uma intromissão é indébita em assunto de natureza eminentemente municipal.
Investindo-se de um papel institucional como uma verdadeira usurpação, o Estado vai produzir um estrago de conseqüências imprevisíveis, na medida em que cai de pára-quedas com projetos saídos das cabeças de alguns “ETs” e de ávidos interessados em serem os destinatário de verbas federais repassadas a quem não tem nada com o peixe.
Para meter o bedelho onde não deve, o governo do Estado usa como gancho a questão da violência. Por conta disso, inventa um “espaço exemplar” na Rocinha ( um oásis no coração da miséria), um teleférico de 120 milhões de reais no Complexo do Alemão e a elevação da linha de trem só para unir duas partes do que seria a mesma favela de Manguinhos, que será adornada por jardins.
A idéia de obras “de confronto” é para dourar a pílula. Essa balela ficou evidente nos primeiros movimentos concretos desses desvarios impostos às próprias comunidades. Logo de cara seus gerentes operacionais viram que não tem sentido servir escoltas policiais aos operários e engenheiros locados nesses focos de tensão.
De fato, desde priscas eras, nunca houve problemas com a realização de obras em favelas. Para a “rapaziada” do local a presença de trabalhadores em suas áreas não afeta suas vidas, até porque, por uma questão prática, essa mão de obra já é recrutada no local.
Como “profissionais do ramo” bem sucedidos, os vendedores de drogas até vêem com bons olhos a circulação de dinheiro, não só porque podem aumentar a freguesia, como também, porque acabam tendo entre seus “amigos” os escolhidos para as funções de vigias dos canteiros de obras.
É claro que a presença do Estado enquanto ente institucional não se pode limitar a desastrosas incursões policiais que só têm contribuído para configurar o fracasso das políticas de segurança pública e aumentar os números da violência – principalmente com o incremento do extermínio de suspeitos e a feira de “balas perdidas”.
Rocinha que vista debaixo
O sistema institucional tem responsabilidades definidas e não pode cumprir suas tarefas com a superposição temporária gerada por atos espontaneistas de governantes despreparados. Quanto isto ocorre, por motivação política menor, boa coisa não vai acontecer.
A Rocinha, a maior favela brasileira, está situada entre dois bairros onde a elite exibe seu luxo e riqueza: Gávea e São Conrado. Do alto das antigas roças de hortaliças, os seus moradores, muitos vindos em levas do Nordeste, contemplam a suntuosidade das habitações vizinhas, o campo de golfe e, naturalmente, sentem uma enorme diferença entre as realidades que Deus lhes reservou.
Mas, até porque tiveram a sorte de se livrarem da fome e da água do mandacaru, esse sentimento não é de revolta, não pode servir de insumo para a “luta de classes”. O mundo moderno inoculou os pobres o vírus da fatalidade social. Enquanto massa, enquanto coletividade, tudo o que aquela gente quer ter é o mínimo para criar seus filhos em paz e fornecer a mão de obra subalterna aos ricos das adjacências.
Mas sempre existem os desgarrados, os que acham que podiam ter uma vida melhor. E como não existe entre os seus um sentimento de enfrentamento coletivo, aqueles tratam de ultrapassar os bloqueios sociais agindo individualmente.
Uns raros conseguem chegar a uma profissão qualificada, até mesmo a uma Universidade. Outros se dão bem no comércio e na grilagem. Outros descobrem suas veias artísticas e seus talentos para o futebol. Há, porém, os que enveredam pelo caminho da prostituição, recorrem do crime, viram assaltantes e traficantes de drogas, renunciando a uma vida longa em troca de alguns anos de “reinado” criminoso.
Por estabelecerem suas trincheiras entre os becos dessas comunidades marginalizadas, acabam servindo de referência aos moradores do asfalto. A favela é assim tida e havida como “santuário do crime”, embora todo mundo saiba que 99% dos seus moradores são apenas pacatos cidadãos que nada podem fazer: muitas vezes, os traficantes, que movimentam fortunas, compram a cumplicidade de maus policiais, tornando arriscado qualquer indisposição com o “movimento”.
Nesse ambiente, os moradores do asfalto vivem assustados, achando que um dia o morro pode descer sobre suas cabeças coroadas. E os poderes públicos, incapazes de encarar a péssima concentração de rendas nas mãos de 18 mil famílias, incapazes de abrir espaços para trabalhos decentes com salários dignos, incapazes de enfrentar a volúpia insaciável da especulação imobiliária, recorrem a amortecedores temporários de resultados cada vez mais pífios.
No caso da Rocinha, as autoridades em todas as esferas desconhecem sua realidade intestina. Nesse aglomerado de barracos de alvenaria há muitas favelas dentro da favela.
Não há comparação entre os moradores da Cachopa e do Bairro Barcelos – são dois “IDHs” bem diferentes. Não há muito em comum entre os moradores, que acabam dominados por um quadro de desigualdade em seu próprio interior: em torno de 20% dos moradores pagam aluguéis a uma meia dúzia de “emergentes do morro”.
Antes de se meter numa favela que já tem quase 90 anos, com projetos mirabolantes de caráter cosmético e espetaculoso, o governo do Estado deveria unir-se à Prefeitura da cidade para uma discussão com os moradores que, desde 2001, estariam contingenciados pelo projeto de “Eco-Limites”, por enquanto uma intenção que nem as estacas de ferro e os cabos de aço conseguem materializar.
Se tivesse visão, o governo do Estado iria fazer direito o que é sua atribuição constitucional. A questão da habitação passa por um outro viés e não pela tentativa de colorir a miséria.
Para fazer seu papel, o Estado não precisa gastar uma fortuna com aventuras urbanas impraticáveis, independente de existirem delinqüentes na área ou não
coluna@pedroporfirio.com


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